quinta-feira, 20 de março de 2014

um domingo qualquer


Cacau acordou num susto. Sentiu que ainda era noite e a casa silenciava. As crianças tinham ido dormir tarde e ainda estavam esparramadas pelo chão. Lembrou que era domingo e não precisava acordar tão cedo como nos outros dias, quando às 4h45 da matina já estava no ponto de ônibus. Hoje, ela merecia o sono dos justos. Foi acordada com um choro de criança e tentou se levantar. Sentiu o peso da idade e o desgaste das faxinas da semana no corpo todo. Quase chegando aos quarenta anos, era hora de diminuir o ritmo, cuidar mais da saúde, afinal, tinha oito crianças pra criar, pensou. Quatro filhos e quatro sobrinhos. Um deles berrava sem parar e Cacau se esforçou pra sair da cama.
Naquele momento sonhou com um dia inteiro só pra ela. Ir à praia sozinha, sair pra dançar com as amigas como fazia na adolescência, pegar um cinema com o maridão como costumavam fazer no começo do namoro. Aconteceu tudo tão depressa, suspirou, enquanto dava mamadeira pro sobrinho. Quando se apaixonaram, ela e Alexandre, não tinham imaginado a vida assim, cheia de filhos e responsabilidades. Durante toda a vida ela acompanhou as dificuldades da mãe, da avó, da bisavó, mulheres, negras e pobres. Não sabe explicar, mas sonhou que teria outro destino.
Ela amava as crianças, o marido e gostava do trabalho também, não reclamava. Só queria ter tempo de ser ela, antes de ser mulher de um e mãe de tantos. Os menores começaram a acordar e ela correu fazer o café. Não tinha mais pó. Abriu a geladeira e viu que a margarina tava acabando também. Olhou na cesta e nada de pão. Acordou a filha de dezoito anos e pediu que olhasse os outros. Botou a primeira roupa que viu pela frente e desceu a ladeira pra ir à padaria. No caminho notou uma movimentação estranha e temeu pelas crianças sozinhas em casa. Alexandre estava de plantão, como vigia no Mercadão de Madureira, e só voltava mais tarde. Na esquina avistou dois policiais fardados e ficou mais tranquila. Apressou o passo, listando na cabeça tudo que ainda tinha pra fazer: dar um jeito na casa, lavar a roupa acumulada da semana, fazer almoço com as sobras da geladeira, organizar as contas atrasadas. Pediu aos céus força e coragem pra seguir em frente diante de tanta dificuldade. Ela não iria esmorecer, tinha filhos e sobrinhos pra cuidar, tinha trabalho, as coisas iam melhorar...
Foi o último pensamento que Cacau teve antes de sentir um empurrão nas costas e uma dor cortante no pescoço. Caiu no chão. Viu gente correndo até ela. Não sentia mais dor, só um relaxamento no corpo inteiro e uma falta de ar. Na boca, um gosto de sangue. Reconheceu a filha mais velha vindo em sua direção, correndo e chorando desesperada. Quis acalmá-la, pedir que cuidasse dos menores, que avisasse Alexandre, que não se preocupasse que tudo ia dar certo. Tentou falar, mas não tinha forças, não tinha voz. Cacau não entendeu quando a tiraram do chão e a colocaram de qualquer jeito no porta malas de uma viatura policial. O carro foi se afastando rapidamente da vida dela e Cacau não viu mais ninguém, não ouviu mais nada.
Só uma voz linda, familiar, cantando uma música que ela adorava. E viu uma luz forte e brilhante, um foco num palco. E sob os holofotes, cantando, estava ela, linda, como sempre sonhara quando pequena. Cacau sonhou ser artista, aparecer na TV, sonhou ser admirada, especial. Sonhou ser uma estrela.
PS: crônica livremente inspirada na história de Claudia Silva Ferreira, 38 anos, auxiliar de limpeza, assassinada no dia 17 de março de 2014 por policiais em Madureira/RJ.

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