domingo, 31 de agosto de 2014

Manada

O fotógrafo que morreu de infarto dentro de um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro era reconhecido pelas belas imagens de natureza, mas vinha trabalhando num tema social. Algo sobre a couraça que o ser humano está criando pra se defender. Uma proteção, uma espécie de pele de rinoceronte.
Quando passou mal dentro do transporte público o fotógrafo quebrou o padrão de inércia daquela gente. Todos pararam o que estavam fazendo, esqueceram celular, namorada, chefe babaca, esqueceram de si mesmos e olharam pro lado. Naquele instante nosso fotógrafo era o próprio estudo de seu tema, material de seu trabalho. As cenas de dentro do ônibus mostram um senhor sendo socorrido no chão gelado. Gravadas de um celular, as imagens percorreram o mundo em segundos. Conteúdo baixado e compartilhado com a força de uma manada.
Não sei dos rinocerontes, mas ainda nos chocamos e nos mobilizamos com histórias como essa. Parece que tragédias nos unem. Parece que encaramos o fato de que somos vulneráveis e tudo pode acabar numa fração de segundo. Todas essas preocupações terrestres podem morrer ali, numa terça à tarde. Aí nada mais faz sentido (ou tudo faz!). Parece que precisamos de tragédias para evoluir como espécie.  
O fotógrafo, de 62 anos, acabou morrendo. Parece que foi pela demora no atendimento. Parece que um rinoceronte da porta do hospital não ajudou no socorro. Parece que tinha chegado a hora dele. Parece que alguns semelhantes se sensibilizaram provando existir sentimento sob a dura couraça. Parece que há esperança.

PS: Os rinocerontes estão em perigo de extinção, Motivo: a caça por conta do alto valor dos chifres de poder curativo. Um mercado que mata milhares e rende milhões.  Os seres humanos também estão com os dias contados. Motivo:  não pensar na manada.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

tempo


Eu quero ficar velho e me sentir bem sob minha pele branquela,
aceitar os dentes fracos e lutar por eles,
relaxar minhas pernas castigadas pelo peso das escolhas,
amar minhas rugas lapidadas por preocupações tolas,
cultuar minhas marcas talhadas pelo tempo, pelo destino.
Aceitar-me na minha pele é fazer as pazes com o espelho,
ser o que se é, ver o que se vê...
é se deixar mudar na lua cheia e se isolar do mundo na TPM,
sem culpa, sem medo, sem dúvida.
Parar de lamentar, lamuriar pelo que não tive e o que não tenho,
deixar de ruminar o passado ou apostar demais no futuro,
e nunca, nunca culpar ninguém por meus atos, minhas escolhas.

Quero ficar velho e aceitar o jardim que plantei.